sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Escondido



Um livro clandestino


O livro lá estava escondido atrás duma pilha de outros livros em saldo assim a meio que envergonhado e, todos quantos passavam mexiam nos outros mas para ele apenas mandavam um vislumbre e assim que liam o título tinham o cuidado de lhe pôr outro livro à frente.

Passou assim, dias e horas a fio até que alguém mais curioso e, provavelmente à procura vá-se lá saber do quê, desviou os outros livros e foi precisamente o título que lhe despertou a atenção. Agarrou nele, este potencial leitor, e por mais que o pousasse noutras bancas enquanto pegava noutros exemplares, aquele ficou-lhe como que agarrado às mãos e mesmo quando se desviava para outra banca sentia a imperiosa necessidade de voltar para trás e trazê-lo novamente na mão esquerda.

Pegou em vários livros que juntou àquele mas já não o largava mesmo quando sentia que ele se insinuava naquela singularidade de permanecer sozinho naquela mão quando todos outros escolhidos viajavam na direita. Mas ele não se importava, lá ia de mansinho a caminho da caixa registadora sem se mostrar demasiado e temendo sempre que no último momento o deixassem numa qualquer pilha ao acaso para que os outros coubessem no orçamento, pois visto que ia isolado, seria o mais provável a ficar para trás e lá iria novamente para ao mais recôndito e obscuro lugar de onde tinha sido resgatado.

Foi uma luta enorme e um stress tremendo até que passou na caixa e entrou dentro do saco ao pé de outros livros de títulos mais chamativos.

Mas também que culpa teria ele tido para que a autora lhe tivesse posto tal nome?

Lá foi pendurado dentro do saco até chegar à sala de espera do comboio e mais uma vez se viu relegado para segundo plano quando foi preterido em favor de outro colega mais charmoso e com um título mais poético que o seu. Que sorte madrasta!

Teve de esperar que o seu novo dono lesse o outro livro e ficou na expectativa se seria ou não o próximo a sair e se o fosse se seria ou não lido. Criou assim uma angústia ao ficar refém dos outros livros do saco. Os outros nem se ralavam pois tinham a sua leitura garantida, mas ele já tinha sido esquecido durante tanto tempo que aquela seria a derradeira esperança de ser lido e porventura talvez divulgado se viesse a cair nas boas graças do dono ou então abandonado no banco da carruagem quando o dono se apeasse.

Mais uma vez o malfadado título o perseguia para todo o lado. E se o revisor olhasse para ele e o deitasse para o lixo sem sequer o folhear?, pois o nome era horrível e punha a nu os sentimentos mais adversos que o ser humano possui. Ninguém gostaria de ser visto com tal livro debaixo do braço e muito menos a ser lido numa carruagem de comboio onde tanta gente poderia olhar e ser enganada pela sua cor rubra, mas o nome lá estava, fazendo o leitor corar de vergonha por ir a ler tal livro. Enfim a saga deste pobre livro ainda não acabaria por ali. O leitor pegou na leitura e aí o seu poder manifestou-se de imediato pois as palavras sucediam-se umas às outras numa catadupa a que o leitor já não podia resistir. A pouco e pouco o leitor foi-se entranhando na leitura e esqueceu-se de tudo e de todos pois só o livro lhe interessava, fechou-o várias vezes, apenas para olhar uma e outra vez para a capa e para o título que já não o incomodava.

Agora tinha de se manter discreto ao viajar para casa do dono e este teria de o dissimular no meio de outros companheiros a fim de não levantar quaisquer suspeitas. Tinham de se desfazer dele fosse como fosse e o dono lá arranjou um estratagema para o emprestar a uma amiga que ficou estarrecida só de ouvir o título, mas enfim, lá o aceitou embrulhado num envelope pardo de maneira a não levantar suspeitas e lá foi escondido clandestinamente na bolsa da senhora até à casa desta onde seria uma vez mais lido às escondidas e subrepticiamente de forma que mais ninguém o visse. A ideia era de que não fosse visto por olhares indiscretos. Já lhe bastava ter de viver escondido atrás dos outros e ter de ser lido de forma clandestina.

2 comentários:

  1. A escrita é propositadamente aversa às regras gramaticais e semânticas a fim de obrigar o leitor a uma pequena ginástica mental, porque tudo o que se não usa perde-se.

    ResponderEliminar
  2. Coitados dos livros clandestinos!Eu diria antes, coitados dos espíritos clandestinos que se escondem atrás dos papéis pardos e dos sacos de compras. Se cada um de nós libertasse um pouco o que em si tem de clandestino, não se venderia tanto papel pardo, nem tanto saco de compras.
    " Diz-se que é violento o rio de águas revoltas, mas ninguém diz que são violentas as margens que o oprimem" - Bertolt Brecht, alemão e comunista

    ResponderEliminar